Meu pai tentou. Tentou muito. E apesar de ter brigado insistentemente para ter uma condição de vida melhor, esteve mais à beira da vida melhor do que dentro.
Lembro-me de, em alguns momentos, o pai estar próximo, muito próximo de chegar lá, como nas promessas que recebia de um trabalho mais rentável, de uma oportunidade em outro estado que lhe daria uma condição melhor, de um contrato novo que fecharia... Mas também me lembro dos outros momentos, em que esteve mais próximo de não ter, de ter que recomeçar seu trajeto de novo e de novo e de novo.
Meu pai foi mais um homem quase rico. Um quase que, vez ou outra, também lhe fazia falta. Quando eu e meus irmãos pedíamos e o pai não podia dar, ele era o quase. Não era o “pão-duro”, como a gente dizia. Pois se ele tivesse mesmo, hoje eu sei que ele daria. Daria mais roupas, mais tênis, mais videogames, como faziam os pais dos amigos que tinham. E meu pai teria uma casa melhor, um carro melhor, viajaria mais. Mas meu pai estava sempre na beira, de quem quase tem muito, de quem quase tem nada.
Ele tinha um conforto. Que muitas vezes era conquistado com um complemento. Além da rádio, além das vendas, o pai fazia assessoria de imprensa, assessoria política, vendia sua voz encorpada para comerciais, para apresentações de eventos... Mas, no fim do mês, ainda não dava para tudo que ele queria, que não era muito, mas seria justo.
Então o pai morreu tentando outro complemento, a sorte. Ele tinha seus números preferidos que jogava toda semana. Era comum, aos sábados, ouvir do pai, em meio às cervejas que tomava em sua casa, que “amanhã a gente muda de vida”. Porque naquela noite correria o sorteio de um prêmio acumulado. Íamos todos ficar ricos, ele dizia. E acreditava mesmo que um dia a sorte chegaria para lhe dar o que ele merecia há anos. E então daria.
Meu pai nunca viveu da sorte. Trabalhava demais, e fazia a vida conquistando pouco a pouco suas coisinhas, sempre entre o arrocho e a gordurinha. Mas nas manhãs de domingo, acordava antes de todos, ia para o escritório e conferia suas apostas, uma a uma. Ele sabia de cor alguns números. Não apostava muito, mas jogava um pouquinho sempre, proporcionalmente ao outro pouquinho que tinha. Nunca contou para ninguém os números que jogava.
Agora, quando passo por uma lotérica, me lembro do pai, do seu esforço em sair da beira acrescentando um pouco de sorte. Então, vez ou outra, eu entro e escolho uma sequência qualquer, aleatória. Às vezes, ao contrário do pai, nem me lembro de olhar se fiquei rico. Mas sempre me lembro dele. E penso que, no fundo, o que eu mais quero é acertar a sequência do pai. Aquela que ele não contava para ninguém e que mudaria a vida de todos. Tomara que um dia eu acerte. E que o prêmio seja ainda maior e mude a vida de todos que perderam você.
Tomara que nesse dia você volte.
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Falando em voltar…
Agora em junho, o curso de crônicas volta para a minha grade de cursos mensais. Vamos aprender a transformar nossas histórias em textos bem arranjados. Porque nesta semana me lembrei que faz 8 anos que sou cronista regular do jornal O Popular (muito mais do que me lembrava), e para celebrar, vou retomar esse curso voltado especialmente para a escrita de si. Como achar a graça das nossas histórias e escrevê-las? Com a crônica. As inscrições estão abertas no valor promocional para as primeiras vagas, por pouco tempo. O curso acontecerá no fim do mês de junho. Saiba mais aqui e reserve sua vaga > > >
Delicado e muito tocante. Depois de ler uma edição anterior, aqui da tua newsletter, e que também falava do pai, abri essa sem esperar que fosse uma continuidade do sentimento da anterior. Me emocionou de novo. Abraço!
o pai vai voltar para recuperar o prêmio. 🍀