Eu nunca soube o que ele disse ao meu pai naquele dia. O que eu sei: no dia em que o pai não morreu, foi o seu “amigo velho” que o salvou.
Lembrei disso ontem, no meio da noite, depois que acordei de um sonho que tive com o meu pai. Demorei a voltar a dormir. E enquanto esperava o sono, me lembrava daquele dia, de uma lembrança que eu não sabia mais lembrar, a não ser por acaso, no meio da noite.
Lembrei-me que o pai, anos antes de adoecer e morrer, já tinha sofrido um infarto e passado longos dias no hospital. Dias difíceis, entre cirurgias de pontes e coronárias e o medo mortal que ele tinha de hospital.
Foi entre aquelas paredes pintadas de azul e branco que o pai viu alguns dos seus onze irmãos se internarem e não voltarem mais. Por isso ele tinha essa ideia de que os hospitais eram lugares de despedidas. E de que sua longa passagem pelo azul e branco seria a sua vez.
O pai quase não ia ao médico. Não se consultava, a não ser quando encontrava um amigo doutor pela rua e aproveitava para lhe perguntar coisas, como quem pergunta “Como vai a família?”. O pai tentava saber o que o doutor achava sobre uma dor que ele sentia, uma mancha que havia surgido debaixo do braço, um caroço na orelha... Mas no hospital ele não ia.
No infarto não teve jeito. Foi direto para UTI. Ficou por dois dias na Unidade, depois, transferido para um quarto. Ficamos com ele por uma semana no apartamento hospitalar. Nos revezávamos entre filhos e esposa. O pai triste, com medo, querendo ir embora sempre que o médico saía da sala. “Eu estou bem”, ele dizia com uma voz que mal saía da boca, com a pele mais pálida que o jaleco frio do médico.
Melhorou pouco com o passar dos dias. Sua ansiedade em sair do hospital forçava o coração a trabalhar mais do que podia e aumentava o risco de outro infarto. Não teve jeito. Foram os médicos que o informaram que deveria voltar a UTI. Ou...
Nem o medo da morte superava o medo que o pai sentia de entrar para a UTI outra vez. Na cabeça do pai, entrar seria o mesmo que morrer. E se fosse para morrer, que fosse longe dali. Meu pai chorou no quarto, sem nenhuma vergonha da gente. E com muito custo e remédio para acalmar o corpo, ele entrou. Ouviu os filhos, a esposa, os irmãos e entrou. Tomou bronca dos médicos e entrou. Mas entrou avisando que ia sair. E lá de dentro começou a se mexer, a retirar os tubos, a chamar os médicos, a avisar as enfermeiras que não ia ficar. As notícias chegavam a nós, na porta da UTI, e nos deixavam ainda mais aflitos. Eu acreditei na morte do meu pai. Chorei antecipadamente enquanto esperávamos que saísse a qualquer momento puxando os tubos, empurrando as macas, ainda vestido com o avental do hospital...
Aí o amigo velho, como o meu pai e ele se chamavam, chegou. Nos viu no corredor. Se aproximou e recebeu nossa súplica. Entrou para a Unidade de Terapia Intensiva com a missão de convencê-lo a ficar. E voltou minutos depois com a boa notícia.
Eu nunca soube o que eles conversaram na UTI. Imagino uma dívida guardada sendo cobrada ali, uma cartada final que só amigos velhos conseguem dar. Uma história que não poderia ser contada em público, sendo negociada no sigilo do leito de uma UTI. Ou...
Uma cena mais simples, mais pura, como costumavam fazer quando se encontravam nos quintais de suas casas. Uma declaração de amor, um abraço mais demorado, algumas palavras engraçadas enquanto os olhos fabricavam lágrimas, um pedido para que não morresse, um até breve...
Como dois amigos velhos fazem.
- - -
Para deixar suas ideias fluirem
No dia 20 de maio começa o meu curso de escrita Destrava - Escrita Criativa, para quem quer aprender a dar fluidez à escrita. Um curso sobre escrita criativa, para desbloquear o caminho entre suas ideias e o texto. Não perca! A turma está se formando. E será gostosa demais. Descomplique sua escrita. Saiba mais aqui e reserve sua vaga > > >
pode ser até que o amigo velho nem tenha dito nada e seu pai tenha entendido tudo no olhar cúmplice que só amigos velhos têm.
Que historia bonita. Me emocionei, e um filme de uma das minhas amizades mais raras passou pela minha mente. Nada melhor do que o amor de um amigo para nos convecer de fazer o que é preciso.