Um corpo quer outro corpo | Carta 02
Uma carta sobre corpos, inseguranças e histórias literárias que se cruzam
Nesta Carta, remeto uma crônica nova, um vídeo-presente enviado por Carrère e outras intimidades literárias. É minha revista íntima completa, enviada semanalmente aos apoiadores. Os bilhetes, também semanais, são apanhadinhos breves que enviarei para todos
Um corpo quer outro corpo
Qual face mostrar? Qual eu quero esconder? A o do namorado inseguro, da namorada mentirosa ou da mãe exigente?
O inseguro: no dia em que a namorada não atendeu minhas ligações, pensei que ela tivesse desmaiado e corri até a casa dela. Não pensei à toa: ela vivia me contando sobre os desmaios, sobre como virava noites em hospitais tomando soro. Era uma doença, dizia. Então esse foi o motivo para eu ir correndo à casa dela quando não me atendeu: ver se tinha desmaiado. Assim como homens inseguros fazem, me apeguei aos desmaios para checar se ela estava em casa.
A mentirosa: quando cheguei ao prédio, ela não atendeu ao interfone. Não hesitei, pulei o portão de metal descascado, subi correndo as escadas até o terceiro andar, bati na porta três vezes, não ouvi barulho vindo de dentro. Pensei em arrombar, mas duvidei da minha força para fazer como faziam nos filmes. Decidi descer até a garagem, no subsolo. Talvez ela tivesse desmaiado no carro, antes de subir. Mas não, a vaga estava vazia. Foi quando comecei a acreditar no que uma amiga tentava me contar há dias: minha namorada me traía.
A exigente: minha mãe era rigorosa comigo e meus irmãos. Se consigo escrever isso hoje, o mérito também é dela, que insistiu para que estudássemos — e estudamos muito. Mas era rigorosa. Quando me lembro de histórias antigas, ela diz: “A gente também se divertia, filho”, como se precisasse compensar os tapas com alguma lembrança boa. Mas quando jovem, eu tinha medo dela. Medo de ir mal na escola; de deixar a casa bagunçada; de não ser o homem que ela queria fôssemos; de engravidar precocemente uma mulher. Ela gritava, me batia e me colocava de castigo por qualquer transgressão. A toalha esquecida sobre a cama era uma transgressão gravíssima. Mas o pior eram os gritos, que começavam quando ela chegava do trabalho, e só terminavam quando íamos dormir. “Me bate logo”, eu pensava, só para que os gritos parassem. “Era o que eu conseguia fazer”, ela se defende contando que os pais dela eram piores. “Seus avós acabavam comigo”.
Depois de escutá-la de novo no meu texto, me flagro pensando se devo realmente publicá-lo. O medo.