Como abrir o presente sem estragar os embrulhos
Bilhete #16 Uma história sobre os corpos da família; como desembrulhar presentes delicados; os rastros de Chico
O sexo era proibido.
Na mesa do almoço não se falava sobre ele nem sobre os desejos, as paixões e o corpo. Escrevo isso enquanto penso num jeito de proteger minha mãe.
“Fiz o que pude, filho”, ela diz quando falo das inseguranças. Mas não há outra coisa que eu queira escrever agora que não seja: o sexo e os assuntos do sexo eram proibidos na família.
Quero investigar de onde vem o medo que tive de mostrar o corpo, de realizar os desejos e sentir os prazeres sem culpa, como celebro as palavras que vão num livro. Quero descobrir de onde vinha a tensão quando a palavra sexo era dita.
E mais: quero investigar o tesão que a família sentia e ninguém falava, mergulhar nesse assunto proibido nos almoços de domingo. Mas não quero culpar minha mãe.
Então a mãe me conta uma história: “Uma vez, sua tia levou um namorado para o churrasco da família. Eles namoravam há um tempo, ele já conhecia o seu avô. Mas quando o meu pai viu sua tia sentada no colo do rapaz, fez uma cena grotesca, expulsou o namorado a gritos e xingamentos, e sua tia nunca mais teve outro homem. Entrou para igreja como tivesse cometido um pecado imperdoável. Era o que o seu avô queria, uma filha beata.”
…
O silêncio sobre o sexo era só verbal. A mãe com quatro filhos, o tio com quatro filhas, o vô com cinco. Todos gozavam.
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Perdi a virgindade tarde, e isso não é um lamento.
Perdi a virgindade com medo de transar, isso sim é um lamento.
Uma vontade que foi adiada pelas vozes que eu ouvia desde novo: “Não seja um homem ruim”, “Não vá engravidar cedo”, “Cuidado com as doenças”, enquanto os tios gritavam sobre religião, política e bebida na mesa do almoço. Nunca gritavam sobre as paixões, nunca sobre as histórias prazerosas, nunca sobre seus corpos nus. Era como se ninguém amasse ninguém, como se ninguém ficasse de quatro por outra pessoa.
O sexo surgia nas piadas machistas, jogadas sobre a mesa como o prato do dia. E os homens riam das piadas comendo o prato sobre os corpos das mulheres da família.
Os homens, que morreram antes, deixaram o medo de herança para os homens que vieram depois.
“Não dava tempo, filho”, a mãe repete para me lembrar das tarefas das mulheres daquela família: cuidar da casa, cuidar dos pais doentes, cuidar dos filhos, trabalhar e envelhecer.
“Vocês tinham que dar certo”, minha mãe diz contando que teve que fugir de casa para estudar, teve que se desdobrar para trabalhar e cuidar dos filhos longe daqueles homens. “Mas deu tempo de falar sobre o respeito, e isso para mim era o mais importante”, ela diz, como tivesse se me livrado de uma maldição.
“Eu precisava que vocês fossem os homens que eu ainda não conhecia”, ela diz.
E diz mais: “Os desejos ficaram para vocês descobrirem sozinhos”, ela me dá esse presente, embrulhado em camadas de papeis que eu demoro a desembrulhar. “Aproveite o corpo!”, “Não adie os desejos!”, “Viva os prazeres” e “Goze” são as frases que a mãe escondeu nos embrulhos.
Tenho insegurança até para escrever sobre o sexo. Tento equilibrar as palavras para não parecer ingratidão. Mas ainda sei mais sobre o medo do que sobre os prazeres.
“Não deu tempo, filho, mas agora você pode”, a mãe repete, como se me libertasse de novo, como se tirasse outro embrulho… Um presente que eu preciso desembalar sozinho.
Mas como é que se abre um presente sem estragar os embrulhos?
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Zarpamos do Rio, e no convés do Giulio Cesare passageiros se abraçavam e brindavam vendo a cidade se afastar na baía de Guanabara. Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como que desarranjando o caminho de volta. (Chico Buarque, em Bambino a Roma)
Termina amanhã o valor promocional para o meu novo curso “Prosa”.
Como faz para avançar na escrita? Como sair de uma ideia inicial para uma prosa mais profunda? O que há neste meio que distingue um projeto autoral?
Acompanhar as novas vozes contemporâneas e aprender com elas é uma forma de ampliar os horizontes para a própria escrita. Vamos estudar isso no meu novo curso “PROSA”, que começa no dia 18 de março.
Serão 4 noites ao vivo de estudos (as gravações ficarão disponíveis aos inscritos) de obras contemporâneas, como A Viagem Inútil, Bambino a Roma, De Quatro, Paixão Simples, Ioga, Blue Nights, Olhos D’água, Quem Matou Meu Pai. Um curso para quem quer desenvolver a escrita literária. Vamos? As últimas vagas com valor promocional encerram amanhã, segunda, 10. Reserve aqui: www.lucaoescritor.com/cursos
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Um beijo desembrulhado,
Luca Brandão
Na minha família foi a mesma coisa. Parece que chegamos na Terra via cegonha 🫠🫠🫠
Me identifiquei demais. ❤️