Já disse em outra crônica que sou feliz porque tenho idade para começar uma crônica com “sou do tempo em que…”.
É claro que isso entrega algumas coisas sobre quem escreve, mas acho charmoso começar uma crônica assim. É como se o texto ganhasse uma mecha branca no cabelo. Tenho certo respeito por pessoas que podem contar histórias que só aconteciam antigamente, e que, quando contam, evidenciam uma saudade imensa.

Sou do tempo em que celular nem existia. E que, quando surgiu, só tinha uma função: fazer e receber chamadas. Tenho saudade desse tempo. Do tempo em que, se o celular estragasse, estragava porque não fazia a única coisa que lhe era designada: chamar. Esse era seu motivo de vida: fazer ligações. A gente usava o celular até acabar. Celular tinha começo e fim. E, quando o aparelho morria, morria de tudo, porque morria da única coisa que tinha que fazer e não conseguia: chamadas.
Hoje não. O celular, antes de morrer (normalmente muito jovem), adoece de tudo, doenças que a gente nem sabia que existiam. Estraga o sistema de som, o touch, a câmera frontal, a câmera traseira, o flash, o sensor de reconhecimento facial… E basta que um desses órgãos do celular falhe para que o celular praticamente morra.
Morre sem morrer de verdade.
A indústria mundial de coisas descobriu esse produto que dá mais lucro e vida longa às marcas: o perecível. O produto perecível é aquele que custa a metade do preço para as marcas e o dobro do preço para o consumidor. É mais interessante porque mantém a indústria ligada o tempo todo, dá volume de vendas e, infelizmente, gasta muito mais energia e combustíveis.
Ou seja, transforma a nossa vida em uma passagem ainda mais efêmera.
Televisores, caixinhas de som, cafeteiras, mixers, batedeiras, máquinas de lavar roupa, geladeiras… Todos ganharam novas funções, que estragam numa velocidade impressionante. São produtos de morte rápida. Mesmo que o coração dos produtos continue batendo, sem as novas funções, sem o espetáculo, eles morrem antes de morrer. As geladeiras ganharam botões touch na porta, que estragam com uma facilidade impressionante, fazendo toda a indústria de perecíveis rodar sem parar. E pode até ser que, mesmo estragada, sua geladeira funcione. Mas o que adianta resfriar se não dá o show?
O mais triste é que essa indústria já chegou aos cinemas, às séries… Os filmes não terminam mais como antigamente. As séries, muito menos. Para assistir ao final de uma série, você precisa esperar um ou dois anos, pelo menos. E, quando ela volta, quando a última temporada começa, você percebe que não vai ter fim. Se a série realmente acaba, logo ela vira um filme ou um spin-off, ou seja, uma nova série a partir da anterior. A indústria do perecível, do descartável, que não homenageia a arte já feita, me cansa. A indústria que precisa sempre fazer uma arte melhor e superar e vender mais me deixa exausto. E arte não é para isso.
Tenho saudade do tempo em que as histórias tinham começo, meio e fim. Do tempo em que os celulares duravam anos. Do tempo em que íamos para os quintais com os aparelhos dentro da casa, porque as ligações eram coisas caras e sérias. Do tempo em que a gente sabia que o filme ia ter continuação ou não se o vilão, já estirado no chão, quase dado como cadáver, na última cena do filme, mexesse a última pontinha do dedo mindinho.
…
Essa saudade das coisas que a gente fazia e que duravam é um pouco do que me mantém escrevendo firmemente. Escrever é essa coisa que dura. Não quero entrar nesse debate contra as inteligências artificiais, pois não é sobre elas que estou escrevendo. Estou escrevendo sobre essa coisa que a gente faz com as nossas próprias mãos e que dura, pois cria memória, cria experiência, mexe com o motor do corpo, nos faz pensar. Disso, sou um eterno defensor: que as pessoas não parem de se mexer, de criar suas próprias histórias, de escrever seus acontecimentos, suas obsessões, perseguições, temas. Que investiguem e descubram ainda mais gosto nesse processo criativo — motivo que nos mantém ativos, vivos, não perecíveis.
Escreva.
…
Neste sábado tem workshop de escrita criativa, para reaprendermos a usar nossa caixola, nossas ferramentas, esse nosso aparelho altamente tecnológico chamado mente criativa. Não perca! Ainda dá tempo de participar aqui, com valor acessível: www.lucaoescritor.com/cursos
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Um beijo,
nos vemos,
Luca B.
é interessante que agora que as coisas físicas duram menos, os filmes e as séries "duram mais", mesmo que nessa mesma lógica do lucro eterno. e "duram mais" entre aspas porque na verdade perdem a graça muito antes, já estão mortos, mas seguem em sequências intermináveis de uma história que já não tem sentido... histórias-zumbis.
Oi, Luca! Sou nova por aqui, acho que este é meu primeiro comentário 🙂 Concordei com muita coisa que você escreveu, mas, como mãe de pré-adolescente, me identifiquei especialmente com o trecho sobre as séries sem fim. Sei que você estava falando sobre audiovisual, mas pensei nos livros. Cada livro que minha filha traz da biblioteca ou ganha de alguém eu descubro que é parte de uma série de 3, 7, 10 livros, sem falar nos spin-offs. Claro que ela me pede pra comprar e, embora uma das minhas prioridades na vida seja incentivar a leitura, simplesmente não há como.